Apenas um dia comum, levanto-me assim, meio desorientada, preocupada pelo dia confuso e impregnado de tarefas que me espera. Pagar algumas contas, responder a alguns telefonemas, e tentar resolver algumas questões antigas. Saio com medo do dia, o sol está causticante, mas acabo me distraindo com as vitrines bem ilustradas de algumas lojas. Do outro lado, da rua, uma jovem me acena e grita:
- Ô professora!
Em um ímpeto, penso em ir até ela, da-lhe um abraço, mas o sol embriaga minhas idéias, e prefiro seguir, lembrando-me das pendências que ainda preciso resolver. Trata-se de uma moça, que fora minha aluna o ano passado. Retribuo o cumprimento de longe, mas ela não satisfeita, atravessa a rua e vem ao meu encontro
- Ô prof! Que saudade
- Saudades também
- A senhora gostou da carta?
- Carta? Que carta?
- Poxa, professora, a carta que lhe escrevi, deixei dentro do caderno que a senhora recolheu no fim do ano.
- Hum, sim, claro!
Uma mania me acompanha desde que leciono, recolher o caderno de alguns alunos no fim do ano letivo. Penso que este costume nasce do fato, de que dou muita importância para os cadernos e registros das pessoas. Possuir um caderno, uma agenda, ou uma carta é como se pudéssemos guardar um pedaço de alguém, para te-lo e recorda-lo sempre que sentir . Necessidade. Muito estranho, é eu não ter lido, e nem sequer notado a carta que minha aluna me escrevera. Um pouco de remorso, recobre meu rosto, tentando disfarçar, dou-lhe um abraço, e continuo a caminhar, agora me indagando por onde “anda” aquela carta. Precisava lê-la assim que possível. Ler uma carta depois de passado um tempo, quase sempre representa uma certa perda, porque as palavras que ali estão manifestadas, podem não ilustrar mais, os sentimentos e os fatos da atualidade. Mas não havia outra solução para minha crise de consciência, eu precisava ler a carta,para perdoar-me por esta distração. Desde o fim do ano passado, guardei os cadernos e ainda não os revi, talvez por isto não tenha percebido a carta. Isto faz com que eu me sinta mais culpada pois se tivesse pelo menos folheado os cadernos, teria tido a oportunidade de encontrar aquela carta, e não passar por tal constrangimento. O dia vai passando, as pendências a serem resolvidas por mim, vão aos poucos se resolvendo sozinhas. Lembro-me de uma frase do Pedro Bial, em que ele deixa claro que a pré-ocupação é tão eficaz quanto mascar chiclete para tentar resolver uma equação de álgebra, e que as encrencas verdadeiras de nossa vida, tendem a vir de coisas que nunca passaram por nossas cabeças, e nos pegam as quatro da tarde de uma terça-feira modorrenta. Chegando em casa, com uma preocupação nítida, vou até a caixa, onde armazeno todo material, cadernos, livros e textos que significam uma parte de mim. Reviro todos os cadernos, a fim de encontrar o caderno daquela jovem e resgatar a carta que ela me escrevera, acabo encontrando e rapidamente leio a carta. Um pedaço de papel de de cor lilás claro, em um envelope branco, direcionado a mim. Fico pensando como uma carta pode ser um bem precioso e o quanto as palavras escritas talvez, se encaixem e signifiquem mais do que as palavras ditas. Infelizmente hoje em dia as pessoas quase não possuem mais este hábito. É comum ganharmos presentes embalados em papéis coloridos e diversos, mas inúmeras vezes desprovidos de pelo menos um cartão, ou uma carta, ainda que ligeiramente escrita em uma folha de papel amarela, de algum caderno que não se usa mais. Ao ler a carta acabo por me emocionar. Ás vezes em nosso ofício de educadores, travamos alguns embates,e passamos por conflitos. Pode -se admitir sentir um pouco de solidão, e em como toda profissão nem sempre as expectativas vão ao encontro das situações reais. Entretanto, pode ser que haja momentos agradabilíssimos, e não há preço para tais momentos reservados à vida de um profissional. Leio e releio a carta e me sinto como uma destas celebridades, recebendo os aplausos de seu fiel público. Lembro-me que a vida pode ser impregnada de significados, quando nos propomos a buscá-los. E como minha aluna me escreveu, “as coisas podem parecer mais simples, quando colocamos sorriso naquilo que fazemos...”
Olho novamente para o dia ensolarado e desta vez penso: “ Que dia abençoado...”
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